sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Lula testa transposição de votos às margens do rio S. Francisco



No lugar onde circulavam caminhões basculantes e escavadeiras retiravam pedras gigantescas partidas e repartidas por perfuratrizes, na noite de quarta-feira, às 19h15 de ontem reinava o silêncio. Não havia um só trabalhador. Os potentes holofotes que iluminaram basculantes e perfuratrizes estavam parados ao lado da escavação na qual, na noite anterior, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva inspecionou o terceiro turno de trabalho do consórcio de empreiteiras que toca o lote 11 do projeto de transposição das águas do rio São Francisco.

Era uma viagem feita para emoldurar a imagem da candidata Dilma Rousseff a presidente. O fato de não haver trabalho ontem não significa que o consórcio encarregado do lote 11 não fará mais um turno, mas também é fato que as obras não estão sendo desenvolvidas no ritmo mostrado ao presidente, à sua candidata à sucessão e aos jornalistas que cobriram a viagem e outros que percorreram as obras um dia antes a convite da Presidência. Nas próximas semanas, é que será possível medir se a popularidade de Lula na região será suficiente para transferir os votos necessários para eleger sucessora a ministra da Casa Civil nas eleições de 2010.

Depois de 16 anos, Lula reeditou com Dilma as caravanas da cidadania de 1993, com as quais o presidente reiniciou o projeto do PT de chegar ao Palácio do Planalto, após a derrota para Fernando Collor numa eleição que dividiu o país, em 1989. Faz 20 anos. Agora, uma pesquisa qualitativa determinou cada detalhe da viagem. A sondagem em poder dos marqueteiros de Lula indicou que é grande o poder de transferência do presidente, quando o entrevistado é perguntado se votaria num candidato por ele indicado.

O resultado foi melhor que o esperado, inclusive em São Paulo, segundo fontes próximas ao jornalista João Santana, o Patinhas, responsável pela vitoriosa campanha de Lula nas eleições presidenciais de 2006 e que já trabalha em função da candidatura Dilma 2010. E nada melhor do que apresentar a ministra eleita de Lula para o melhor público do presidente, o Nordeste, junto com a obra cujo verbete sempre estará associado a Lula, em qualquer enciclopédia, se efetivamente for realizada - o fato é que vencidas as barreiras ambientais e jurídicas, o trabalho nos canteiros de obras foi acelerado.

"Essa obra está sendo pensada desde 1847", discursou Lula para um pequeno grupo de trabalhadores que ouviu com impaciência o secretário-executivo do Ministério da Integração Nacional, João Reis Santana Filho, fazer uma longa descrição técnica da obra, sob um sol escaldante e temperatura acima dos 35 graus à sombra. "O imperador Pedro II queria fazer essa obra. Eu estou falando de 200 anos. E eu resolvi fazer. Não por ser engenheiro e conhecer. É porque eu, com sete anos, carreguei pote de água na cabeça, eu sei o sacrifício."

As queixas que sobraram para o longo discurso de Santana também alcançaram o presidente. Pela razão oposta: falou pouco. O suficiente, no entanto, para mais uma vez se identificar com o povo nordestino, incentivar o imaginário da incompreensão de quem "toma café da manhã, almoça, janta e toma água gelada" com o nordestino sofrido, atacar adversários da transposição (convenientemente, o bispo Luiz Flávio Cappio participava de um evento fora da região) e para dizer que comanda uma das maiores obras em execução no planeta.

Lula se comparou a Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), o presidente que tirou os EUA da Grande Depressão de 1929. "É uma das maiores obras em realização no mundo. Só tem igual quando o presidente Roosevelt pegou o lugar mais pobre dos EUA, chamado Vale do Tennessee, e transformou aquela região numa região produtiva", disse, para depois acrescentar que obras como a transposição servem para desenvolver a região: "O Nordeste não precisa produzir mais pedreiro; o Nordeste tem que produzir engenheiro", disse o presidente.

Lula não percebeu, mas ao lado dele a ministra Dilma perdeu o equilíbrio. Refeita, bateu a poeira da calça e permaneceu o resto do discurso em pé, firme. O palco, armado por uma empresa do Recife que faz "shows, festa de 15 anos e casamento" tinha tantas armadilhas quanto as tendas e cercados construídos às pressas pelo consórcio que comanda as obras do lote 11, formado pelas empreiteiras OAS, Galvão, Coesa e Barbosa Mello.

Nem o consórcio nem o Ministério da Integração Nacional revelaram o custo dessas obras, um oásis no meio do sertão do Pajeú: a sala de imprensa e os quartos destinados ao presidente, ministros e jornalistas tinham ar condicionado e água corrente. O maior apartamento, com cama king size, entre ministros, governadores e deputados que integravam a comitiva era de Geddel Vieira Lima, titular da Integração Nacional. Só perdia para os de Lula e Dilma, próximos.

O desequilíbrio de Dilma não foi o único imprevisto da viagem, marcada por diferenças políticas desde o seu planejamento. Na véspera do embarque de Lula, ao amanhecer de quarta-feira, o governador da Bahia, Jaques Wagner, pernoitou em Brasília. Estava convencido de que seria o único baiano a desembarcar com Lula na Bahia, mas teve de engolir em seco a presença, no avião, de Geddel, que rompeu politicamente com o governador e ameaça disputar o cargo de Wagner em 2010.

Lula é amigo de Jaques Wagner, mas deixar Geddel de fora era difícil. Além de ministro responsável pelas obras do São Francisco, Geddel diz que apoiará a candidatura da ministra Dilma nas eleições presidenciais, independentemente do fato de concorrer contra o PT na Bahia. O ministro é figura-chave para a consolidação da aliança com o PMDB. Os petistas torceram o nariz, pois estão convencidos de que Geddel acabará no palanque do provável candidato tucano a presidente, José Serra.

No avião que partiu de Brasília, Geddel e Wagner trocaram gentilezas numa roda com Lula, Dilma, o ministro Franklin Martins e o deputado Ciro Gomes (PSB-CE), também pré-candidato a presidente. O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que preside o PSB, disse que o partido fez, até agora, tudo o que foi "combinado com o presidente". E que mais adiante haverá uma nova conversa, definitiva. Ministros que acompanharam Lula, como Franklin Martins, segundo apurou o Valor, se dizem convencidos de que, no fim, os partidos da base aliada, como é o caso do PSB de Ciro, terão um candidato único em 2010, a ministra Dilma. Ciro insiste que será candidato.

No primeiro dia da "caravana", um constrangimento: Lula desembarcou em Pirapora, município governado por um prefeito do DEM, e seguiu direto para Buritizeiro, município governado pelo PT. Aécio estava no aeroporto e posou para fotos com Lula e os outros dois presidenciáveis, assim como ele no PSDB: Dilma e Ciro. Mas não seguiu com Lula. O governador e o presidente, em conversa, gesticulavam como se discutissem. Aécio negou, dizendo que apenas falara sobre a Lei Kandir com o presidente. Ficou o mal-estar (ver reportagem ao lado).

Implicâncias políticas à parte, o fato é que as obras do "Projeto São Francisco, um rio melhor, um rio para todos", o slogan que tomou o lugar da polêmica "transposição" também chamada de "interligação", está andando e transformando as regiões onde está mais adiantado, como os lotes 11 e 1 visitados por Lula e Dilma. A obra tem dois eixos: o Eixo Norte, com 402 quilômetros, terá duas pequenas centrais hidrelétricas e levará água para Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte; o Eixo Leste, com 220 quilômetros, irrigará parte do sertão e as regiões do agreste de Pernambuco e da Bahia. Emprega atualmente 8 mil trabalhadores, ninguém ganha menos de R$ 600. O contraste entre o novo e o velho já é visível ao longo das obras.

Esse é o caso de Custódia, município localizado a pouco mais de 30 quilômetros do lote 11, que já atingiu 16% das obras previstas. Há dois anos, a cidade vivia pendurada no fundo de participação, algo em torno de R$ 900 mil. A arrecadação de ISS era de R$ 20 mil. Houve um salto gigantesco e hoje Custódia arrecada do tributo R$ 600 mil. O mesmo ocorre em Sertânia, o município na outra ponta do vértice formado com Custódia e o lote 11.

O empresário Iuri Gonçalves de Souza, 45 anos, é um exemplo do "boom". Ele já está pensando em expandir com mais 30 apartamentos o hotel Macambira, que antes vivia vazio e hoje mantém a ocupação em 100%. "Tive de hospedar gente em casa dos meus parentes na visita do presidente Lula", diz. Iuri também está no comando da segunda maior fábrica de sucos de fruta e extrato de tomate do Nordeste. Ele é obrigado a comprar tomate em Goiás, às vezes até na Espanha, para manter a fábrica, com 800 funcionários, a todo vapor. Ele compra em torno de 6 mil toneladas de frutas/safra e torce para que a transposição viabilize projetos de irrigação na região, o que faria baixar os preços que atualmente paga.

O agronegócio é um dos principais alvos dos críticos do projeto do São Francisco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, criticados ontem por Lula. O bispo Cappio foi citado nominalmente. Não é difícil identificar o destinatários das palavras de Lula em uma entrevista às rádios do Nordeste: "Ser contra lá na Tijuca, no Rio de Janeiro, na Avenida Paulista é fácil. "Eu sou contra depois abro a geladeira e abro uma água Perrier [marca de água francesa] geladinha". Agora, vem pra carregar uma lata de água na cabeça com caramujo e tudo para depois tirar com uma canequinha uma água barrenta para beber".

Dias antes, o governador de São Paulo, José Serra, tucano líder das pesquisas de opinião sobre a eleição presidencial de 2010, fizera críticas a projetos de irrigação que visitara no Nordeste, região que se tornou também rotineira na agenda de pré-candidato do governador paulista.

Lula culpou novamente o Tribunal de Contas da União (TCU) pelo atraso de obras, Segundo o presidente, o problema hoje não é falta de dinheiro para as obras. Dinheiro tem, disse na entrevista aos radialistas, mas "muitas vezes, o Tribunal de Contas diz que tem indícios de provas de sobrepreço, e aí para, aí você tem que fazer todo um processo. Muitas vezes, a empresa que perde a licitação entra na Justiça e para a obra. Fazer uma obra no Brasil hoje é muito difícil".

Didático, deu o exemplo de uma licitação para a compra de computadores para escolas públicas: "Nós ficamos dois anos fazendo licitação para entregar 350 mil computadores às crianças, nas escolas. Demorou dois anos para que o Tribunal de Contas permitisse que houvesse a licitação. Agora, as pessoas não medem qual é o prejuízo para a nação e para as crianças se você ficar dois anos esperando."

Lula, como é costumeiro, atrasou a viagem em praticamente todas as etapas, mas pelo menos em uma ocasião incluiu de última hora um compromisso: foi na manhã de ontem, para propiciar aos fotógrafos e cinegrafistas imagens da implosão de um trecho de canal no lote 11. Mesmo local onde, na noite de quarta-feira, vistoriou o trabalho do "terceiro turno". Perfuratrizes (ligadas quando o presidente estava prestes a chegar, depois de assistir no acampamento ao jogo entre Brasil e Venezuela), tratores e caminhões basculantes, davam a impressão de um ritmo frenético, acelerado no andamento das obras. No lote 11 trabalham 1,25 mil operários.

Ao contrário de 16 anos atrás, quando liderou as caravanas da cidadania, desta vez Lula desfrutou de confortos como ar condicionado, cama king size e água gelada. O presidente se deslocou entre os eixos do projeto São Francisco de helicóptero, o que, em algumas ocasiões, provocou situações embaraçosas. Quando decolou do lote 11, por exemplo, uma espessa nuvem de poeira encobriu os trabalhadores e populares que foram se despedir do presidente.

No chão, Lula várias vezes teve de percorrer estradas de terra batida. Antes, um carro-pipa molhava a estrada, para que não levantasse poeira quando o presidente passasse.

No Nordeste, Lula teve 77,10% dos votos, na eleição de 2006. Na Bahia e Pernambuco, os dois Estados visitados na "Caravana do São Francisco", bateu nos 78% dos votos. É uma situação diferente das caravanas de 1993. Trata-se agora de um presidente quase idolatrado, na região, num esforço para eleger a candidata que impôs ao PT numa eleição que prefere "plebiscitária", na base do "nós contra eles".Valor

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